CLAUDEMIR GOMES
A clausura imposta pelo coronavírus nos deixa com uma certeza: quando as coisas voltarem ao ritmo normal, nada será como antes. As ruas estão desertas, mas o mundo não parou. Observo os filhos executando trabalhos online, participando de videoconferências, enquanto os netos estudam e participam de aulas, também pelo sistema online. Enfim, existe um movimento silencioso. As pessoas estão se reinventando, se preparando para uma grande mudança de comportamento que está por vir.
Estamos em pleno Século XXI e o homem ainda resiste as mudanças.
A vida nos ensina que é preciso estar atento aos sinais. Se faz necessário entrar em sintonia com a nova ordem. É difícil, quase impossível, imaginar o amanhã. Contudo, temos a certeza de que paradigmas serão quebrados e é imperativo rever conceitos, adquirir novos hábitos e costumes.
Uma das mudanças mais marcantes, e que tive dificuldade de digerir, foi quando Carpina, minha cidade natal, perdeu sua autonomia no transporte coletivo intermunicipal. Os que fazem parte da minha geração, de gerações anteriores, e outras subsequentes, devem recordar.
Nos anos 50 - não precisa retroagir mais no tempo - numa Carpina ainda bucólica, o transporte coletivo era feito por empresas locais: Auto Viação São José (proprietário: seu Chico perna-de-pau); Auto Viação São Luiz (Valter Cisneiros); Auto Viação Alexandre (Newton Cavalcanti); Auto Viação Três Marias (seu Cacilde). Meu pai - Jaime Gomes - era o motorista de um ônibus cujo proprietário se chamava Clóvis, que morava em Paudalho. No início dos anos 60, com o apoio financeiro do meu tio - Renato Albuquerque - meu pai comprou um ônibus novo (modelo Chevrolet Brasil - em homenagem a inauguração da nova Capital da República), e colocou o nome de Expresso São Judas Tadeu.
A época os veículos eram primitivos, com bagageiros externos e pouco confortáveis. Depois foram evoluindo e surgiram os portas-malas. Internamente os ônibus eram decorados com flâmulas de clubes, de santos, de propagandas e tudo o mais.
A autonomia de Carpina no transporte coletivo era uma coisa que orgulhava os filhos da terra. Afinal, nenhuma outra cidade da Mata Norte, e do Agreste, tinha tantas empresas de ônibus. Em Limoeiro havia uma queda de braço entre a Progresso de João Tudo de Melo e o Expresso 1002 de José Marque da Silva (Zé Bodinho). Em Timbaúba, duas empresas disputavam aquela fatia da Mata Norte: Confiança e Santa Maria.
O projeto de expansão da empresa - Expresso 1002 - era bastante ousado. Na condição de cidade pólo, Carpina era vista como a ameixa do pudim. Num curto espaço de tempo a começamos a observar ônibus do Expresso 1002 vindos de Limoeiro, João Alfredo, Bom Jardim, Machados, Passira, Umbuzeiro, Orobó, Surubim... A 1002 comprou as empresas de Timbaúba e passou a dominar aqule filão da Mata Norte.
Para entrar em Carpina a empresa Progresso adquiriu a linha e os ônibus de seu Chico perna-de-pau. As empresas familiares da Cidade Planalto passaram a amargar a concorrência de um estranho no ninho: Empresa AVS. Os ônibus novos chamavam a atenção.
O monopólio imposto pelo poder econômico da 1002 era insustentável. Aos poucos, uma por uma, as empresas domésticas foram cedendo as mudanças impostas pela nova ordem da época. Os últimos moicanos foram o Expresso São Judas Tadeu, do meu pai, Jaime Gomes, e as Três Marias, de seu Cacilde.
Aquela ruptura na história do transporte coletivo da minha cidade me entristeceu bastante. Carpina havia perdido sua autonomia. Sinais dos tempos. Me restava a memória afetiva, que alimento até os dias atuais.
Tudo era muito romântico. Antes de partir com destino à Recife, os ônibus cumpriam um circular pela cidade: Pátio da Feira, Rua do Colonial, Rua de Odon, Bairro de Santo Antonio... As viagens para as praias nos feriados de 7 de Setembro; 15 de Novembro e 8 de Dezembro. Viagens para festas de São Sebastião em Paudalho; para a Festa de Lagoa do Carro, no dia 2 de fevereiro... o transporte de passageiros de outros municípios para a Festa de Reis e a festa da emancipação no dia 11 de Setembro. As viagens durante o mês de dezembro, levando grupos de xangô para levar oferendas para Iemanjá, nas praias...
O romantismo de uma época havia chegado ao fim. O monopólio da empresa 1002 era uma imposição do progresso que as empresas domésticas de Carpina não tiveram fôlego para acompanhar.
Mudanças se processam permanentemente. A nós, o desafio da adaptação, mesmo guardando a memória afetiva.
CLAUDEMIR GOMES
Não é fácil essa travessia pandêmica a qual o mundo foi submetido. Não existem limites para o Covid-19. Pelo menos até descobrirem uma fórmula, uma vacina para a erradicação da primeira grande "peste" do Século XXI. Até lá vamos digerindo más notícias todos os dias.
Os mais otimistas aconselham a buscarmos as coisas positivas que estão sendo proporcionadas pelo distanciamento social. A reclusão nos deixa com tempo de sobra para pensar, repensar, mergulhar no passado, rever sonhos e sentir medo do presente e do futuro.
Um medo que é provocado pela falta de limites do letal coronavírus.
Impor limites sempre foi um desafio. A rebeldia é inerente ao ser humano.
A primeira lição sobre impor limites, aprendi quando criança, na primeira escola que frequentei: o Dispensário São José, na Avenida Chateaubriand, em Carpina.
O educandário era um equipamento bem dividido. Existia a parte residencial, onde moravam as freiras, tinha a capela e outras dependências. E num outro bloco, as classes e um pátio onde foi construída uma quadra poliesportiva.
Pois bem! No edifício onde moravam as freiras, existia um terraço com um único móvel: um banco verde. Lugar aprazível, com vista para um bem cuidado jardim, mas que era temido por todos os alunos.
O banco verde era aterrorizante. Sinônimo de castigo. Era pra lá que eram conduzidos os alunos que cometessem qualquer tipo de indisciplina.
Na realidade não acontecia nada além de um isolamento por demais confortável. Todos, principalmente os pequeninos do Jardim da Infância, tinham tanto medo do banco verde quanto das estórias da Comadre Fulozinha.
Aquele banco imóvel, confortável, belo objeto de decoração, nos fora apresentado como um instrumento de repressão. Foi a forma mais convincente encontrada pelas administradoras do Dispensário São José para impor limites aos alunos.
O banco verde era real. O castigo era coisa do imaginário. Afinal, o cenário era muito mais convidativo para uma reflexão do que para qualquer outra coisa. O lugar certo para os pequenos rebeldes esfriarem a cabeça, e receberem as primeiras lições sobre imposições de limites.
OBS: Dedico esta crônica a doce e paciente Alice*, minha primeira professora, cujo zelo, carinho e cuidados são inesquecíveis.
(*) Alice é esposa do poeta Luiz de França (Casado).
CLAUDEMIR GOMES
"COMO SERÁ AMANHÃ?
RESPONDA QUEM PUDER
O QUE IRÁ ME ACONTECER?
O MEU DESTINO
SERÁ COMO DEUS QUISER."
O verso inserido na letra do samba - O AMANHÃ - grande sucesso na interpretação da Simone, se transformou na indagação mais pertinente para este período de pandemia onde tudo é incerteza. Os procedimentos de médicos e cientistas são todos baseados no empirismo, até porque o inimigo - COVID-19 - é desconhecido.
Países adotam procedimentos diversos no combate ao coronavírus, mas nada se tem de concreto, em quase seis meses de luta. Correntes são criadas, teses são discutidas, mas o fato é que, enquanto não for descoberta uma vacina, para combater, e imunizar, a população mundial, todos seguirão batendo cabeça.
A sensação de ficar sentado "com a boca aberta, escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar" é terrível". A impotência brutal é observada em todos os setores da sociedade.
Acompanho com bastante atenção as incertezas que pairam sobre o futebol brasileiro. Algumas discussões me parecerem irrelevantes ante a necessidade de se buscar, e definir um norte. O problema é que ninguém sabe como será o amanhã.
É comum, entre os pernambucanos, se dizer que o ano começa depois do carnaval. Talvez, como tudo que se fala, no momento, é no pressuposto, num futuro próximo, alguém venha a desenvolver o título: 2020 - O ano que nunca começou.
O cartunista, Humberto Araújo, que costuma expressar seu pensamento através de traços memoráveis, extraindo o humor de situações diversas, foi taxativo: "Este ano já se foi". Isso não quer dizer que ele foi contaminado pelo pessimismo disseminado pelo vírus letal, mas é que a incerteza está na ordem do dia.
Dirigentes de todos os escalões se sentam, em videoconferência para buscar uma saída para o caos. O pensamento é sempre de cima para baixo. A preocupação maior é com a elite, ou seja, a Série A. O resto vem a reboque. É assim que a banda toca.
Não há espaço para discussão sobre o futebol raiz. Os clubes do Interior estão prestes a fecharem suas portas. Eles que vivem numa mendicância permanente, sentem dificuldades para suportar as imposições do coronavírus.
Enquanto os homens discutem novas estratégias para o combate a peste da nova era, seguimos o samba:
"COMO SERÁ AMANHÃ?"
CLAUDEMIR GOMES
A história da Igreja Católica, Apostólica, Romana é marcada por lutas sangrentas, como nos mostram as Cruzadas e outras frentes de conquistas. Conspirações, barbáries e escândalos foram camuflados e escondidos nos calabouços do tempo. Mas nesta trajetória secular não existe nenhum registro de êxodo dos católicos durante a Semana Santa, período que marca o final da quaresma. São sete dias, a começar pelo Domingo de Ramos, tendo como fechamento o Sábado de Aleluia.
O esvaziamento das igrejas imposto pelo coronavírus é, portanto, um fato inédito, histórico e surreal.
A Semana Santa é (ou já foi) o período de maior recolhimento dos católicos. A celebração da morte e ressurreição de Cristo, sempre foi um mote para reflexão. A morte é uma única certeza que temos em vida. Portanto, é preciso aprender a conviver com ela.
Por ter uma formação católica, a Semana Santa sempre foi tratada de forma especial por minha família: meus antepassados, meus pais... Aprendi a ajudar o padre rezar a missa respondendo em latim. Por alguns anos, quando estudava no Salesiano, em Carpina, tive o privilégio de ser escolhido para representar um dos apóstolos na missa do lava pés. Uma celebração solene com uso de matraca, incenso e outros acessórios que são usados em ocasiões especiais.
Num passado não muito distante, a Igreja aconselhava os católicos a comerem peixe a partir da quarta-feira. O ato de jejuar na sexta-feira santa era uma praxe nas famílias. Comentava-se que os católicos mais ortodoxos além do jejum não tomavam banho durante todo o dia.
Dizem que a juventude foi criada nos anos 60 do século XX. A revolução cultural virou o mundo de ponta cabeça, promoveu uma mudança de hábitos, de comportamento e quebra de paradigmas. Evidente que as transformações que se acentuaram com a terceira revolução industrial, que nos colocou na era digital, iriam respingar na Igreja, que por sua vez se mostrou despreparada para entrar em sintonia com a nova ordem.
De repente, a Semana Santa passou a ser sinônimo de lazer. Nada de retiro e reflexão. A programação é ir para o Interior, para a praia, mas ao invés de reza, brincadeiras e muita bebedeira. A ordem é encher a lata. E a festa mais sagrada passou a ter um viés profano absurdo.
Os padres perderam o controle do rebanho.
Até o espetáculo da Paixão de Cristo, no maior teatro ao ar livre do mundo, em Nova Jerusalém, passou a ser apresentado como um circo com atrizes e atores globais. Criaram espaço para tietagem dentro do espetáculo da Paixão.
Em nome da arte criaram um Cristo gay e colocaram um pênis em Nossa Senhora. Absurdo. Fico a cobrar o brado da Igreja, até porque, na minha formação católica aprendi que a omissão é um pecado terrível.
Sou contra a qualquer tipo de radicalismo, mas a COVID-19 deu um freio de arrumação na humanidade.
E o papa ficou só!
Daria um minuto da minha vida para saber o sentimento do papa Francisco, caminhando sozinho, na imensa praça São Pedro, no Vaticano, para rezar pela humanidade. Uma cena forte, inesquecível. Uma dor imensurável ao se sentir impotente diante da "prisão" do seu rebanho.
O homem volta a se sentir pequeno diante de um mistério que lhe exige fé.
CLAUDEMIR GOMES
1º DE ABRIL - DIA DA MENTIRA!
Recordo as brincadeiras do tempo de criança. Os mais astutos se esmeravam na criação de estórias para pregar peças nos amigos. E todos assumiam uma postura de defesa para não ser o bobo da corte. No balanço final se observava que ninguém escapava de um trote.
Contemplo a praia da janela do apartamento e não flagro uma viva alma sequer, na imensidão das areias desertas. Praia urbana, como Boa Viagem, sem o colorido dos guarda-sóis é um cenário surreal.
Na era digital a mentira foi banalizada, e aparece com o nome sofisticado de fake news. A coisa ficou séria. Não é aquela brincadeira inocente de 1º de Abril.
Nunca imaginei que o silêncio das ruas incomodasse tanto os ouvidos. O pior de tudo é que não é mentira. Não se trata de uma "marca" do 1º de Abril. Tudo que poderia ser fruto da imaginação - praias e ruas desertas, lojas e escolas fechadas - é a realidade imposta pela pandemia do coronavírus.
O homem está assustado, com medo. Alguns em pânico. O fim do mundo, que já foi mote para tantas previsões frustradas, lhe parece iminente.
Deus é quem sabe!
De uma coisa temos certeza: não é uma gripezinha. Também não é mentira. É tão real como o 1º de Abril. Só que hoje não há espaço para brincadeiras.
As interrogações aumentam a cada dia. Elas crescem na mesma proporção do número de vitimas da pandemia. Nada será como antes após este holocausto.
Aprendemos que o fogo destrói a vegetação na superfície, mas não queima a raiz, que volta a florescer para um novo tempo.
Quais as raízes de sustentação da humanidade?
O que teremos aprendido após a passagem do CONVID-19?
O distanciamento social nos leva a reflexões. Estudamos um pouco mais o nosso EU. Em contrapartida, soluções apontam para um enclausuramento maior no futuro. É a realidade da era digital que dita sua ordem: quanto menos gente na rua melhor.
E as relações humanas?
Nossos filhos e netos já não brincam mais de 1º de abril.
Eis a grande verdade do Dia da Mentira.